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Uma prisão sem algemas, sem uniforme, onde é permitido o uso de objetos cortantes como garfos, facas, furadeiras, lâminas e serrotes. Quem guarda as chaves do presídio é um detento, que cumpre pena como qualquer outro da unidade. As celas têm uma cama pra cada um. Os presos podem ver televisão, assistir a jogos de futebol e, além das visitas, têm direito a telefonemas para as famílias duas vezes por semana.
Parece impossível, mas essa é a realidade em uma Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC). Com 49 estabelecimentos no Brasil, a primeira unidade foi inaugurada em 1972, em São José dos Campos, São Paulo. O percentual de recuperação é de cerca de 70%, sendo a reincidência por volta de 30%. Já no sistema prisional convencional, o cometimento de crimes após a reclusão chega a 75%, segundo o Tribunal de Justiça de Minas Gerais. De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), estão entre os principais desafios penitenciários brasileiros a superlotação e as recorrentes rebeliões, problemas que o sistema alternativo não apresenta.
Minas Gerais é o estado que concentra a maioria das APACS, com 39 em funcionamento. Para conhecer melhor essa realidade, a reportagem do jornal Gazeta do Povo foi até o estado visitar a unidade de Nova Lima, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. O Estado, considerando toda a população carcerária, tem 71.437 presos, entre provisórios e sentenciados, mais de 10% do contingente nacional que, segundo o CNJ é de, aproximadamente, 660 mil detentos.
Ao chegarmos ao local, fomos recebidos por um recuperando que não terá o nome publicado. Ele pediu que aguardássemos na recepção até a chegada do presidente da APAC, Ricardo Lopes. A unidade, visitada pela Gazeta do Povo, foi quase toda construída pelos presos e fica em uma região praticamente rural.
O percentual de fugas nas APACS, em 2018, representa 0,38% dos 3.600 que cumprem pena nas unidades, de acordo com a Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados (FBAC). Para explicar um número tão baixo, Ricardo Lopes, que já foi gerente de banco, assaltado cinco vezes e que, no passado, pensava que “bandido bom é bandido morto”, usa uma frase do advogado Mário Ottoboni, criador do método APAC, “ninguém foge do amor”.
O presidente da APAC de Nova Lima, que exerce a função de forma voluntária e com dedicação exclusiva, conheceu o método como membro da Pastoral Carcerária, onde mudou completamente seu pensamento sobre a recuperação de um criminoso.
Rotina rígida
Durante a visita, a reportagem pôde comprovar que na unidade existe hora pra tudo. A metodologia APAC segue 12 elementos, dentre eles o trabalho e a espiritualidade, além da máxima de que “ninguém é irrecuperável”. Fomos o tempo todo, sem a presença do presidente da unidade, guiados por um recuperando que pediu pra ser identificado como Edgar Emanuel e preferiu não ser fotografado.
Com 35 anos, ele foi condenado, por homicídio, a 31 anos de prisão, passou pelo sistema convencional e está há quatro anos na APAC. Em julho conquista o direito ao semiaberto, enquanto isso, além de ter feito cursos de marketing e gestão pessoal, cursa uma faculdade de turismo à distância, uma das parcerias da APAC.
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Os “recuperandos”, como são chamados, acordam às seis da manhã. É o Toque da Alvorada. Eles arrumam as celas, oram, tomam café e às 7h30 começa o trabalho. No regime fechado, alguns trabalham na manutenção, reforma e construção das próprias dependências e outros em atividades laborais dentro da unidade.
Um dos locais de trabalho é a padaria que, além de produzir para consumo interno, fornece pão para as escolas da rede municipal de ensino de Nova Lima. São 8 mil pães por dia, sendo 176 mil por mês. Com o dinheiro da venda, segundo a administração, é possível comprar os insumos, pagar parte dos funcionários da unidade, dois padeiros profissionais, um maestro e uma advogada que acompanha a execução criminal dos detentos, detalhe por detalhe.
Pavarotti, como gosta de ser chamado, está em Nova Lima, no regime fechado, há 3 anos e 2 meses. Em 2019 ele será autorizado a realizar o trabalho externo no regime semiaberto, enquanto isso, no fechado, ele é o padeiro, atividade que exerce, muitas vezes cantando. No dia da nossa visita ele “apresentou”, enquanto trabalhava na confeitaria, “O sole mio”, de Luciano Pavarotti e “Con Te Partirò”, de Andrea Bocelli. Questionado sobre a relação dele com a APAC, ele destaca: “Mesma coisa de uma casa pra mim”.
No regime fechado, os “recuperandos” também fazem artesanato, cuidam de uma horta, um herbário e todos eles, quando entram na unidade, ficam três meses na marcenaria, tido como momento de abstração das influências externas, de terapia.
No prédio do regime semiaberto, onde já funcionou uma APAC feminina, construída pelos detentos, existe uma fábrica semijoias e outra de hóstias, que produz 60 mil unidades por mês, mas tem capacidade para um milhão e 500 mil.
O almoço é servido pontualmente às 11h30, onde todos podem assistir TV no refeitório. Depois retornam ao expediente que termina às 17h. A partir dessa hora podem estudar, fazer exercícios físicos, jogar futebol e assistir TV. Às 22h todos se recolhem, mas quando há um clássico de futebol que extrapola o horário, como um Atlético x Cruzeiro, com a devida autorização, é possível assistir. Se um erra, todos podem ser punidos.
Nas visitas, não existe revista íntima, apenas um raio-x. Os parentes não podem levar alimentos, tudo é comprado na lanchonete dentro da unidade. O número de crianças não é limitado. Para os que têm namoradas ou esposas, em dias da semana conforme escala, três suítes podem ser usadas. Segundo eles, são os lugares onde se limpa com o maior asseio da casa.
Ao contrário do sistema convencional, no sistema APAC não se tem agentes penitenciários, as visitas de voluntários, parceiros e até de jornalistas são menos burocráticas. No entanto, a ausência de escolta armada não quer dizer que não haja vigilância. Ao todo, são 12 inspetores de segurança, que são pagos com a verba de custeio que é sempre de responsabilidade do Governo do Estado. O mesmo recurso financia também a equipe administrativa. O profissional de TI e a contabilidade, que são serviços terceirizados.
Durante todo dia, os presos ficam com as celas abertas, não existe solitária, mas tem um cômodo parecido. Durante a nossa visita, Edgar, o guia, mostrou a porta de uma fortaleza e disse “nosso amigo Anderson está aqui há quatro dias, ele toma remédios controlados, se desentendeu com um colega e veio pra cá. Você quer vê-lo?”. Respondi que não precisava, não queria incomodar, mas ele insistiu. Eu aceitei. Reparei na feição de outros detentos um leve sorriso, mas não desconfiei. Quando olho pra dentro vejo uma capela. Era uma brincadeira. Tudo parece uma maravilha e é, segundo a maioria dos detentos ouvidos pela reportagem, desde que as regras sejam sempre seguidas à risca. A entrada e o uso de drogas e celulares são inaceitáveis, considerados faltas gravíssimas e podem ocasionar o retorno para uma penitenciária comum.
Desafios
Para o gerente de relações institucionais da Fraternidade Brasileira de Assistência aos Condenados (FBAC), Rinaldo Cláudio Guimarães, o maior desafio das APACS é conquistar a adesão de governos estaduais e conscientizar a sociedade que o sistema prisional é uma questão de política pública. “A responsabilidade é de toda a comunidade e não só do Estado enquanto instituição governamental”, afirma.
Em Minas Gerais, a Secretaria de Estado de Administração Prisional (SEAP) ajuda na manutenção das unidades, não sendo a responsável pela sua administração e construção. O investimento em 2017 foi de R$ 43 milhões.
A Assembleia Legislativa de Minas Gerais aprovou no final de 2017 lei que obriga o Governo do Estado a gastar 20% do que é destinado a novas unidades convencionais para construção de APACS. “O percentual foi definido assim porque 20% dos presos são elegíveis para estar nas APACS. Além disso, o preso custa numa penitenciaria normal entre R$ 3,5 a R$ 4 mil e na APAC de R$ 1,3 mil a R$ 1,5 mil. Com essa economia, podem ser construídas novas unidades”, destacou o autor do projeto deputado Agostinho Patrus.
Nem todo detento é aceito
Os critérios de transferência do sistema convencional para APAC, estabelecidos pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) e reconhecidos pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), são basicamente não ser preso provisório e sim condenado, não ter cometido falta grave no sistema comum, ter vínculo social ou familiar na comarca e ter uma carta de próprio punho do preso expressando o desejo de ser transferido.
Na avaliação do pesquisador e professor do curso de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica em Minas Gerais (PUC-MG), Luis Flávio Sapori, a APAC não substituirá o modelo prisional convencional. “A APAC será sempre uma alternativa, principalmente por causa do viés religioso que o condenado é obrigado a aceitar. Este é, de alguma maneira, o principal impeditivo para que a associação se torne um modelo amplo e irrestrito, que possa substituir um modelo de estado”.
Ainda de acordo com Sapori, a APAC necessita do sistema convencional para garantir sua disciplina interna. “A ameaça constante da transferência do preso para o convencional funciona como recurso de controle, de garantia de que ele vá se adequar a toda disciplina. A APAC não é tão simples quanto parece. Não é algo ao qual qualquer criminoso se disponha, mas há algo sedutor que é seu caráter de humanizar”, avalia.
Expansão
As APACS estão presentes em 23 países. No Brasil são 49, sendo 39 em Minas Gerais, uma no Rio Grande do Norte, seis no Maranhão e duas no Paraná, que pode ter mais de 40, superando o número mineiro de acordo com o gerente de metodologia da FBAC, Roberto Donizetti.
Segundo Donizetti, no Paraná, o número de APACS pode chegar a oito este ano, já que o Governo do Estado está adaptando e reformando alguns prédios desativados, o que é um processo mais rápido. Ele espera que, em breve, o estado iguale ou supere o número de unidades em Minas Gerais.
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