O modelo de renúncias fiscais aprofunda o sistema
de castas na cultura

Espetáculos musicais da Disney foram autorizados a
captar incentivos fiscais
Unanimidade no axé, Claudia Leitte não escapou das vaias ao se
apresentar no Rock in Rio cinco anos atrás. A sombra do
megafestival produzido por Roberto Medina parece persegui-la. Dias após o
Tribunal de Contas da União recomendar o fim de incentivos da Lei Rouanet para
eventos com “potencial lucrativo”, processo inspirado na renúncia fiscal de 2
milhões de reais obtida por Medina em 2011, a cantora foi autorizada a captar
incentivos para publicar uma biografia.
A aprovação de seu projeto não poderia vir em pior
hora: as vaias virtuais, com campanhas indignadas nas redes sociais, levaram a
artista a desistir de valer-se da legislação para concluir o projeto.
Apesar da reação à biografia da cantora, a captação
cumpria os requisitos técnicos exigidos pela Rouanet. A empresa responsável
previa ainda a distribuição gratuita de 2 mil exemplares da obra. Em meio à
farra crescente dos incentivos fiscais na Cultura, muitos deles utilizados em
projetos com potencial para gerar receita a seus produtores, o financiamento do
livro impressiona menos pelo valor, 356 mil reais, e mais pelo péssimo timing.
Enquanto o TCU quer impedir eventos
“autossustentáveis” de ter acesso à Lei Rouanet, o Ministério da Cultura
defende a reformulação dos mecanismos de fomento por meio do Procultura.

Claudia Leitte também foi autorizada a captar incentivos fiscais.
(Valter Pontes)
Cada vez mais concentrados nas mãos de poucos
artistas e produtores, os incentivos fiscais respondem por 80% do fomento
público à cultura no País. Criada para estimular o mecenato, a legislação tem
produzido efeito inverso. Nos projetos aprovados pela Lei Rouanet em 2015,
apenas 4,4% do total investido proveio de patrocínios diretos. Em compensação,
o Estado deixou de arrecadar 1,17 bilhão de reais no ano passado para financiar
a cultura, dos quais mais de três quartos foram destinados à Região Sudeste.
Segundo o Minc, 50% do dinheiro fomentado beneficiou apenas 3% daqueles que
inscreveram projetos. “É perverso”, diz o ministro Juca Ferreira (entrevista
à pág. 30).
Além do financiamento de artistas e eventos
bem-sucedidos, o apoio a espetáculos-musicais de origem estrangeira, como Wicked e Disney
on Ice, estão entre os projetos mais polêmicos. No ano passado, 43 peças do
gênero captaram 50,9 milhões de reais pela Lei Rouanet, um quarto de toda a
renúncia fiscal dedicada às artes cênicas no período. Os empresários do setor
argumentam que a bilheteria não é capaz de cobrir os custos de produção.
Também no ano passado, o Rock in Rio foi autorizado
a captar 18,3 milhões de reais pela Lei Rouanet, mas Medina desistiu dos
incentivos para poder aumentar o valor dos ingressos de 260 para 350 reais. Em
2013, o festival captou 8,8 milhões de reais, quantia suficiente para financiar
mais de uma dezena de festivais de médio porte no País.
Prestes a chegar à sua 24ª edição, o Abril Pro
Rock, realizado anualmente em Pernambuco, custou 700 mil reais em 2015. Assim
como outros eventos musicais independentes, o evento depende de patrocínios
diretos. Recentemente, a Petrobras tornou-se a principal apoiadora de festivais
regionais. Neste ano, reduziu o valor dos repasses em 20%, reflexo da crise da
estatal. Produtor do evento e presidente da entidade Festivais Brasileiros
Associados, Paulo André Moraes comemora o apoio, mesmo minguado. “Poucos
festivais independentes conseguem captar por editais e menos ainda pela
Rouanet.”

Nas edições de 2011 e 2013, o Rock in Rio, que trouxe Rihanna, valeu-se
da renúncia fiscal. ( Antonio Scorza/ AFP)
Para diminuir a distância entre as grandes e
pequenas produções, o Executivo encaminhou ao Congresso, em 2010, o Procultura.
A proposta reformula a Lei Rouanet, com medidas para democratizar o acesso ao
fomento e melhorar a distribuição dos recursos pelo território nacional, além
de viabilizar fontes alternativas previstas, mas que nunca saíram do papel.
A renúncia fiscal não é o único mecanismo de
fomento previsto pelo Programa Nacional de Apoio à Cultura, instituído pela Lei Rouanet em 1991. À época, também foi
criado o Fundo Nacional da Cultura, com o objetivo de financiar projetos com
menor apelo comercial. A legislação autorizou ainda a constituição de Fundos de
Investimento Cultural e Artístico (Ficart), destinados à captação de recursos
no mercado financeiro para grandes projetos.
O Ficart jamais foi posto em prática, devido à
dificuldade de atrair investidores. O Fundo Nacional de Cultura (FNC), por sua
vez, agoniza diante da escassez de recursos. Em 2015, sobraram míseros 90 milhões
de reais para investimentos, menos de um décimo do valor captado por renúncia
fiscal por meio da Lei Rouanet.
A redação do Procultura sofreu várias mudanças ao
longo dos quatro anos de tramitação na Câmara. Agora encontra-se em discussão
no Senado, onde o Minc se empenha para retomar o espírito original. As idas e
vindas do projeto refletem, em parte, as constantes mudanças no comando da
pasta, avalia a deputada Alice Portugal, do PCdoB, relatora do projeto na
Comissão de Cultura da Câmara. “O texto foi apresentado pelo ministro Juca
Ferreira, mas pouco depois ele foi substituído por Ana de Hollanda. No fim de
2012, Marta Suplicy assumiu a pasta. Depois Juca voltou. Cada um deles tem uma
visão distinta.”
De acordo com Carlos Paiva, secretário de
Fomento e Incentivo à Cultura do Minc, o Procultura deve remodelar os
mecanismos da Lei Rouanet. Para viabilizar o Ficart, estuda-se a possibilidade
de atrair investidores através de incentivos fiscais. Esses fundos poderiam
financiar projetos com perspectiva segura de retorno financeiro. Para reavivar
o Fundo Nacional de Cultura, o governo pretende fixar um patamar mínimo de
investimento, que não pode ficar abaixo do total de recursos captados por meio
de incentivos tributários.
Haveria três tipos de aportes: o apoio não
reembolsável, para projetos experimentais ou de cultura popular, sem apelo
comercial; o investimento, no qual o Estado entraria como sócio e teria
participação em caso de lucro; e o crédito, para produtores que precisam apenas
de um empréstimo a juros baixos.
O Procultura deve estabelecer ainda cotas regionais
no FNC, de forma a garantir uma melhor distribuição dos recursos. A ideia está
longe de ser consensual. Especialista em políticas culturais, José Teixeira Coelho
Netto, professor aposentado da USP e ex-curador do Masp, pondera que a cultura
depende de certo grau de concentração. “Não adianta criar um polo de cinema no
interior, se não houver especialistas em fotografia, geradores ou equipamentos.
Há uma concentração inevitável na área.”
As renúncias fiscais devem ser preservadas no
Procultura, mas passarão a exigir contrapartidas dos patrocinadores.
Atualmente, quem apoia projetos de artes cênicas ou livros pode deduzir 100% do
valor investido no Imposto de Renda por meio da Rouanet. Pela proposta do
governo, uma empresa só poderia gozar de renúncia integral se não associar sua
marca ao empreendimento. Caso pretenda se beneficiar do marketing, a dedução
ficaria limitada a 80% do valor.
O projeto vislumbra a criação de fundos setoriais
para a música, artes cênicas e outras áreas, à semelhança do que ocorre no
audiovisual. Seria uma saída interessante. A criação de um fundo para obras de
cinema e televisão mudou o patamar do setor. A partir de 2010, o número de produções
brasileiras bancadas por recursos públicos passou de 6 para cerca de 150. O
principal motivo foi a criação da Contribuição para o Desenvolvimento da
Indústria Cinematográfica Nacional, a Condecine, taxa recolhida de
distribuidoras de conteúdos audiovisuais.
Principais contribuintes, as empresas de telefonia
comprometeram-se a abastecer o fundo com uma porcentagem do valor de cada linha
ativada. O repasse, capaz de chegar a mais de 1 bilhão de reais anualmente, foi
aceito pelas teles em 2010 em troca da permissão de explorarem a venda de
pacotes de tevê por assinatura.
Uma decisão recente da Justiça carrega, porém,
o potencial de sufocar o setor. Incomodadas com o aumento de 28,5% na taxa, as
teles acionaram a Justiça e obtiveram uma liminar para liberá-las do pagamento.
Segundo o argumento das empresas, acolhido na Justiça, elas não se beneficiam
do fundo do audiovisual. Cineastas e atores como Fernando Meirelles, Cacá
Diegues e Wagner Moura fizeram um
abaixo-assinado contra a decisão. Presidente da Agência Nacional do Cinema,
Manoel Rangel aposta numa reversão em instâncias superiores. “Ganhamos antes no
Supremo Tribunal Federal”, disse, em um encontro com profissionais do setor na
quarta-feira 24.
Caso as teles consigam se esquivar da taxa,
pequenos e médios produtores de audiovisual serão os principais atingidos.
Baseada no Rio de Janeiro, a produtora 3 Tabela Filmes não quer perder o espaço
conquistado desde 2011. O primeiro longa produzido pela empresa,Sudoeste,
do diretor Eduardo Nunes, levou dez anos para ser concluído por falta de
financiamento. A produtora Izabella Faya e seus sócios tiveram de recorrer a um
edital de baixo orçamento do Minc. O filme recebeu 23 prêmios e foi exibido nos
principais festivais do mundo.
Recentemente, a 3 Tabela ganhou um edital para
integrar um núcleo criativo de conteúdo infantojuvenil fomentado pela Ancine,
com recursos do fundo setorial. “A Condecine desencadeou o melhor momento do
audiovisual brasileiro”, afirma a produtora. “Eu consumo audiovisual pelo
celular, tenho três filhos jovens que assistem séries pelo celular. Causa
estranhamento o argumento das teles.”
No encontro com cineastas na quarta 24, Ferreira,
possível candidato à prefeitura de Salvador neste ano, criticou a decisão da
Justiça. “Costumava falar: ‘Pense em uma coisa absurda, ela já aconteceu na
Bahia’. Agora é: ‘Pense em uma coisa absurda, ela ocorre no Brasil.” No atual
momento do financiamento cultural no País, a falta de lógica prospera.
*Reportagem publicada originalmente na edição 890
de CartaCapital, com o título "Os fracos não têm vez"
Por Miguel Martins e Rodrigo
Martins – Carta Capital
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